Márcia Raposo - Precisamos falar sobre a miséria social

26/05/21 - 13:56

imagemMárcia Raposo
Jornalista

 

 

Na barriga grávida, a mulher escreveu seu grito de desespero: “Não despejem meu bebê”. Nos braços de outra, a criança exibia feliz uma pintura lúdica no rosto. Mais à frente, uma menina explicou que escrevera uma cartinha para a juíza pedindo para não tirá-la e nem a mãe do lugar onde moravam. Levada pelo neto, uma senhora na cadeira de rodas tinha o olhar triste, mas via, com ar de aprovação, a movimentação ao seu redor. Estas cenas representam a cara da pobreza em Sete Lagoas, que decidiu se organizar e apelar: “Não nos tirem do lugar que estamos porque não temos para onde ir!” O despejo pelo prefeito Duílio de Castro, autorizado pela juíza Wstânia Barbosa Gonçalves, está marcado para esta quinta-feira, dia 27. Mas ainda há tempo de se reverter.

Há 93 anos, o escritor Mário de Andrade criou o herói brasileiro Macunaíma e deu a ele uma fala emblemática: “Pouca saúde e muita saúva, os males do Brasil são”. E o país ainda continua o mesmo. O Brasil sempre foi o país da fome. O medo de não ter o que comer não deveria existir. Mas aqui,  a elite econômica historicamente pautou a ausência das políticas públicas e fez pouco caso diante das exclusões sociais, raciais e culturais. A insegurança alimentar faz parte desse quadro desigual e injusto. A ausência de moradia também. A educação, a saúde, o lazer, direitos básicos constitucionais, não são garantidos por governos e mais governos.

Setelagoanas e setelagoanos, que figuram nestas cruéis estatísticas de um país sem cidadania, saíram às ruas da cidade, na última terça-feira, numa atitude corajosa e pioneira, informando que  existem e não estão mais dispostos a se calarem. Elas e eles representam 95 famílias do lugar que passou a ser conhecido como OCDD – Ocupação Cidade de Deus. Lá estão 97 crianças, idosos e pessoas doentes. Com a pandemia, perderam renda e não puderam pagar aluguel. Mulheres sofriam violência de companheiros e viram na ocupação um lugar de proteção. Na OCDD tem horta, tem escola para as crianças, tem barracos construídos por eles mesmos em madeira, tem barracos de lona, tem dispensa onde são colocados alimentos que recebem de organizações e pessoas.

Existem ali várias outras situações que mostram a miséria cravada em Sete Lagoas. Uma miséria que a sociedade prefere não ver e que o poder público escolhe ignorar. Para o Judiciário ali estão “invasores” de terreno alheio. O terreno é da prefeitura e está há 20 anos sem utilidade. Por mais de um ano, esta prefeitura não ofereceu solução digna para as famílias. Elas passaram frio e chuva. Elas viveram na lama. A Câmara de Vereadores, como instituição, não exerceu seu papel de representar cidadãs e cidadãos perante a administração pública. Alguns vereadores, individualmente, passaram por lá principalmente na época das eleições e até depois, mas não se colocaram como intermediadores de diálogo com a prefeitura. Por sua vez, a prefeitura apresentou alternativas que não foram aceitas pela comunidade porque manteria a manteria numa mesma situação social de ausência de moradia.

Ali há um problema social grave. No entanto, ouvi afirmações de que “lá só tem gente que já tem casa”. Quando pergunto quantas são essas pessoas, a resposta é “eu conheço um”, “eu conheço dois”. Sim, mas e o restante? Que raciocínio é este que se justifica numa possível fraude de pessoas sem caráter,  ao invés de se sensibilizar com a pobreza de uma maioria que clama por ajuda? Não se pensa em justiça social. Pensa-se em acusar, em rejeitar, em apontar os 10 dedos. Em manter o preconceito contra os pobres, que muitos consideram “vagabundos”.

O que está acontecendo em Sete Lagoas é o cenário comum em nosso país. E o mais recente é o gerado pela pandemia da covid-19: no mês de abril constatou-se que 116 milhões de brasileiros não têm o que comer. Sobrevivem com a mobilização da sociedade que atua para combater a insegurança alimentar. Nesta cidade, existem várias iniciativas como o Projeto Mão Amiga, o Projeto Mãos que Doam, o PT Solidário e outros. Cozinhas comunitárias foram criadas em espaços da cidade. Refeição pronta é distribuída a pessoas em situação de rua.

Pressionado pelo Congresso Nacional, o governo federal garantiu auxílio emergencial significativo no início da pandemia. Depois suspendeu. Depois criou de novo, mas em níveis tão baixos que os que recebem o benefício têm que escolher entre comer e pagar conta de luz, por exemplo. No entanto, há exemplos também de prefeituras que criaram políticas públicas para atender esta situação emergencial.

Municípios de 14 estados criaram auxílios emergenciais próprios e atenuam a fome e o desespero. Aqui não. Sete Lagoas é uma cidade rica. Agricultura própria, grandes empresas, geram caixa para o município. É mais que chegada a hora de prefeito e Câmara de Vereadores buscarem solução semelhante. É preciso, senhoras e senhores, falar sobre a miséria social!

E, prefeito Duílio de Castro, ainda há tempo de recuar da ordem de despejo das familias da OCDD. Seja grande, prefeito. Seja do tamanho que se espera de um governante que se preocupa e age em favor de um povo miserável.

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