Por Amauri Matta
Euclides Marques Andrade, ao prefaciar as “Reminiscências de um Médico”, obra que reuniu escritos, outrora publicados ou anotados pelo Dr. João Antônio Avellar, compreendendo o período de 1876 a 1913, disse ser “enorme e variada a colaboração dele em “O Reflexo” e outros jornais. Em coluna ali estampada, “Carteira de Bento Gil”, por exemplo, João Antônio Avellar aborda temas diversificados, sempre com lucidez e com compreensão. E perto do acontecer de todo o dia, sem ficar longe da essência mais alta. Pelos títulos, pode-se fazer uma ideia: “Provérbios que se contradizem”, “Linguagem forense esquisita”, “Vergonha em parecer econômico” e muitos outros” (Obra citada, pág. 15. Belo Horizonte: Imprensa Oficial de Minas Gerais, 1985. 344 páginas). Neste artigo, ocupo-me da “linguagem forense esquisita”, que os juízes, os delegados de polícia, os promotores de justiça, dentre outros tomadores de depoimentos, há séculos reproduzem: “Dentre as muitas esquisitices da nossa linguagem forense, há uma fórmula que me faz mal aos nervos e não sei por que motivo ainda é conservada. É fórmula usada quando, perguntado a uma testemunha se é parente, amigo ou inimigo do réu ou de quem é parte em um processo, responde não ter parentesco, amizade, nem inimizade com ele. Redige-se então essa resposta assim: “Aos costumes, disse nada”. Acho uma porção de esquisitices nessa frase: 1º) A palavra “costume” hoje não é em nenhuma frase empregada na acepção arcaica que essa conserva; 2º) Conservada mesmo a acepção, parece que seria muito melhor dizer – sobre os costumes, do que aos costumes; 3º) A ordem melhor seria também “nada disse”, que não teria a dureza do disse nada; 4º) A frase, como é usada, não parece exprimir a verdade do que quer exprimir. De fato, havendo a testemunha respondido não ser parente, nem amiga, nem inimiga do réu, não é verdade que tenha “dito nada sobre esses costumes”. Inquestionavelmente, disse alguma coisa, senão “aos costumes”, ao juiz, a respeito deles. Para que se conservam tais frases? O “se por al não estiver preso” dos alvarás ainda “transeat”, mas esse “aos costumes disse nada”, deve ser abolido. Desde que já se abandonou a expressão das “Ordenações do Reino”, que chamava a morte na forca de morte natural, podem-se também abandonar esses “costumes” que os costumes de hoje não podem tolerar e esse “disse nada” do qual se deve dizer alguma coisa” (Obra citada, pág. 140. Artigo publicado em “O Reflexo”, de 05-11-1905, nº 07).
Sobre os leilões judiciais, anotou o Dr. Avellar: “Quem quer que tenha assistido a uma arrematação em praça, há de ter notado que o pregoeiro, um oficial de justiça, serve-se sempre de frases, por assim dizer, sacramentais, das quais não há hipótese de se afastar, porque são fórmulas que o velho Portugal nos legou, creio que por intermédio das célebres “Ordenações do Reino”. O oficial anuncia: “Acha-se em praça tal objeto avaliado por tanto”. Um arrematante diz quando dá e o oficial repete: “Tanto me dão por tal objeto: se há quem mais dê chegue-se a mim que receberei o seu lanço”. E depois, se ninguém dá mais, é feita a “afronta” pela maneira seguinte: o oficial, com um ramo ou uma flor com que se acha desde o princípio, caminha para a pessoa que vai fazer a arrematação, dizendo essa frase original: “Afronta faço, porque mais não acho, se mais achara, mais tomara; dou-lhe um … e dois … e três … e então entrega o ramo. O tal “chega-se a mim que receberei o seu lanço, já é um tanto original, mas compreende-se. A tal “afronta”, porém é que é difícil compreender-se. Afronta por quê? O significado que se conhece desta palavra é “ação ou palavra de injúria ou desprezo. Que injúria pode haver em entregar-se o “ramo” em uma arrematação? De ordinário, o oficial de justiça, pregoeiro, ainda aperfeiçoa a frase, dizendo: Afronta “falso” … E porque o “dou-lhe um … e dois … e três?” Hão de convir que é extravagante, para não dizer mais, essa fórmula das arrematações judiciais. Pode ser que ela fosse muito significativa e até espirituosa em Portugal, no tempo em que foi adotada, mas hoje, e cá no Brasil, desculpem que o diga, é simplesmente asnática. Para que não se perca tal “preciosidade”, faço-lhe este ligeiro comentário aqui nesta carteira, onde ele fica melhor que nos formulários (Obra citada, pág. 148. Crônica publicada em “O Reflexo”, de 10-11-1907, nº 08).