Sobre a “virtude do inconformismo”

Conheça a história da passagem do hoje premiado jornalista sete-lagoano Renato Alves pelo SETE DIAS, que foi convencido pelo também jornalista Chico Maia, em 1994, a optar pela carreira. "Dizia que eu tinha a virtude do inconformismo. Argumentei que temia o mercado de trabalho. Sabia que ele era o dono do Sete Dias", relembra.

14/12/21 - 09:17

Renato Alves em frente à principal entrada da Cidade Proibida, em Pequim, após a viagem à Coreia do Norte
Renato Alves em frente à principal entrada da Cidade Proibida, em Pequim, após a viagem à Coreia do Norte

Renato Alves 

No último ano do antigo segundo grau, enfrentava o dilema sobre a escolha do curso superior. Ideias iam de história a computação, passando por mecatrônica e biologia marinha. O certo é que eu gostava de ler, escrever, ouvir música, ir a shows de rock, conhecer gente, explorar lugares e estudar história do Brasil e do mundo. 

Meu professor de história no Regina Pacis, Sérgio da Mata, me ensinou a questionar, pensar, expor as minhas ideias e defendê-las com argumentos convincentes. No colégio da Praça Tiradentes assisti a palestra da jornalista Márcia Raposo, tia de uma colega, que abriu meus olhos para o jornalismo.

De certa forma, o jornalismo fazia parte da minha rotina. Meu pai passava boa parte do tempo em casa ouvindo um radinho de pilha. Aos sábados e domingos, comprava os principais jornais da cidade e o Estado de Minas, então o grande jornal dos mineiros. Não perdia um telejornal da Globo.

Mas a decisão só viria após um encontro casual com outro jornalista setelagoano, Chico Maia, em 1994. Foi ele quem me convenceu a optar pela carreira. Dizia que eu tinha a “virtude do inconformismo”. Argumentei que temia o mercado de trabalho. Sabia que ele era o dono do Sete Dias.

Deixei de me matricular no curso de ciências da computação, para o qual havia sido aprovado, e fiz rematrícula em um cursinho preparatório de Belo Horizonte. 

Além de incansável trabalhadora, minha mãe era uma sonhadora, que também gostava de ouvir e contar histórias. Desenhava, costurava, bordava, fazia enfeites para as festas dos filhos. Ouvia música jovem. Teve um grupo de teatro, formado por seus alunos de escolas públicas.

Com total apoio dela, me matriculei em jornalismo na PUC-MG, quando a instituição só tinha o câmpus do Coração Eucarístico. A mudança para Belo Horizonte e a universidade mudaram a minha vida. Logo tive a certeza da escolha feita e percebi que poderia ser quem eu quisesse ser. Encontrei a minha turma.

Os mestres e amigos
Já no primeiro semestre do curso, bati à porta do Sete Dias e pedi um estágio. Combinamos que começaria a trabalhar no semestre seguinte. E assim foi feito.

Morando em BH, passava as terças, quartas e quintas-feiras dormindo em Sete Lagoas para dar conta das pautas que o Júlio Assis, então sócio do Chico, me incumbia de cumprir. Iam de seis a 10, os mais diferentes temas. Cruzava Sete Lagoas a pé atrás de entrevistados. Além de apurar e escrever as matérias, fazia as fotos e ajudava na diagramação. Trabalhava muito. Vivia cansado, mas adorava.

Além de aprender meu ofício, conhecia gente e lugares interessantes na cidade onde havia crescido. Mesmo não tendo nascido em berço de ouro, com parentes na periferia, graças ao jornal descobri uma Sete Lagoas muito além da Lagoa Paulino. Na redação e nos bares, tinha a oportunidade de conversar com figuras como Leo Falabella, Leo Drummond e Dalton Andrade, colaboradores do Sete Dias. 

O primeiro, crítico de cinema, foi fundamental nas minhas escolhas nas locadoras de VHS. O segundo me apresentou o universo da fotografia. O terceiro aguçou o meu interesse pela história setelagoana, além de ser o parceiro de Sérgio da Mata (sim, aquele) na mais inteligente e sagaz coluna do jornalismo local, Os Imexíveis. 

O então novato Sete Dias se destacava entre os demais semanários da cidade por sua ousadia e por dar espaço a estudantes de jornalismo (os demais eram feitos por gente fora da área) e a profissionais das mais diversas áreas que conheciam profundamente o assunto do qual tratavam. Gente nova, fora do circuito das trovinhas, estranha aos gabinetes locais.

Ao mesmo tempo, colaborava com o Point, o suplemento voltado ao público jovem do Sete Dias, comandado por Luiz Carlos Romualdo Filho e que tinha os hilários Os Ilegíveis Oreia e Borreia. 

A liberdade e as pressões
Teria três passagens pelo Sete Dias em quatro anos. Do estagiário que mal sabia escrever, me tornaria seu editor. Claro que nem tudo foram flores. Houve frustrações e até brigas. Afinal, era uma redação de jornal, muitas ideias, opiniões. 

Mas nunca enfrentei grandes barreiras para publicar meus textos. Algo raro em se tratando de um veículo do interior, onde geralmente eles fazem as vezes de porta-vozes do mandatário do momento em troca de publicidade, dinheiro público. 

Tal foi a liberdade no Sete Dias que vi o seu dono escrever um editorial chamando de “leão de chácara” o homem mais rico e poderoso de Sete Lagoas à época, por ele ter me barrado em um debate entre os candidatos a prefeito na sua TV.

Aliás, foram muitas as dores de cabeça que arrumei ao sócio-proprietário do jornal. Uma delas, por eu publicar uma manchete que mostrava a baixa produtividade dos legisladores locais - “Vereadores ganham sem fazer lei”, em letras garrafais.

Pela primeira vez, um veículo e um jornalista se atreviam a fazer algo que deveria ser corriqueiro: levantar e publicar o balanço anual da Câmara Municipal. Mas isso atiçou a ira dos vereadores, acostumados à serventia, à bajulação. 

O presidente da Casa, Ronaldo Canabrava, foi tirar satisfação com o prefeito, Marcelo Cecé. Afinal, como assim o jornal do seu secretário de Turismo fazia aquilo? No mínimo, tinha que rolar as cabeças de Chico Maia e do tal Renato Alves.

Pois bem. Chico não perdeu seu cargo nem se atreveu a contar tal episódio a mim em tom ameaçador. Continuei à frente da edição do Sete Dias enquanto ele permaneceu secretário, licenciado do jornal, como acordara com Julio e Cecé. 

Anos antes, aliás, Cecé havia bradado contra o Chico e a minha pessoa por causa de outra manchete que eu assinara: Iveco vem para SL. O político dizia ser mentira, impossível a instalação de uma montadora de veículos na cidade. Um delírio.

Logo o Cecé que adorava usar a sua rádio e o seu jornal para anunciar obras das suas gestões (1985-1988 e 1997-2000) que nunca saíram do papel, como um teleférico ligando a antiga Praça de Esportes à Serra de Santa Helena, onde haveria um hotel de luxo, com elevador panorâmico ao lado da cascata. 

Mas Cecé cumpriu seu primeiro mandato e voltou a concorrer por aquele que seria o último contra o então prefeito Múcio Reis (1993-1996). Por isso fazia de tudo para desqualificar o que poderia ser visto como positivo para a administração local. Muitas vezes com métodos bem questionáveis, que viraram sua marca.

Eu, o jovem estudante de jornalismo magrela e cabeludo que não tinha nem uma bicicleta nem nada a ver com essa disputa, tratei de apurar a informação que recebera de um executivo da Fiat e publicá-la, em primeira mão. Como a história mostrou, não era eu nem o Sete Dias que mentia. 

As apostas e as derrotas
Em tempo: nunca morri de amores por político algum, muito menos por Múcio. 

Integrei um grupo liderado por Dalton Andrade que lutou contra a derrubada dos antigos galpões da Rede Ferroviária Federal (RFFSA), no centro da cidade. Empreiteiro que se apresentava como gestor moderno, Múcio anunciou uma moderna estação de passageiros de ônibus onde ficavam as históricas construções da RFFSA, que sonhávamos ver transformadas em espaço cultural, com museu, teatro, escola e galeria de arte. 

Múcio terminou seu mandato sem levantar  um tijolo da prometida super estação de transbordo sobre o terreno da RFFSA, onde sobrou só mato, após os centenários telhados e as nobres madeiras de lei dos galpões serem saqueadas impunemente. 

A administração Múcio Reis seria uma enorme decepção para os setelagoanos que apostaram em uma guinada na política local ao eleger um nome fora dos grupos que se revezavam no poder, um outsider. 

Aposta refeita no também engenheiro Mário Márcio Maroca, quem elogiei em artigo neste jornal, quando começava seu mandato de vereador, como uma boa promessa, ao lado de outros estreantes na Câmara Municipal. 

Aliás, por causa de Maroca e de outro artigo neste mesmo jornal, ganhei o meu primeiro e ainda único processo pelo Sete Dias, quando já não integrava a equipe. 

Dois irmãos empresários, guseiros, ricos, influentes, não gostaram de ter o sobrenome citado no texto em que eu criticava o início da gestão Maroca pela prática de nepotismo.

Além do irmão, Maroca empregava um primo e a mulher do primo no primeiro escalão da sua equipe. O rapaz em questão era filho de um dos irmãos-empresários-guseiros-ricos-influentes. Todos parentes de Maroca.

Não era segredo de Justiça. Não inventei nada. Era fato. Algo que ia contra a promessa de uma administração sem os vícios da velha política, o que levava à escolha de Maroca prefeito. Mas os donos de sobrenome famoso não gostaram.

O artigo sobre a gestão Maroca ainda mexia com a amizade do dono do jornal com os citados empresários. Mas, em momento algum recebi qualquer recado sobre a repercussão, a não ser o comunicado sobre o processo. 

Para nos defender, logo se apresentaram advogados setelagoanos que sempre prezaram pela defesa da liberdade de imprensa. Um deles, João Luiz Sampaio de Castro, o senhor que aprendi a admirar nos primeiros dias de estágio no jornal, assim como o sempre gentil e bem humorado Mauro Rocha, o Martim Pescador.

Que fim levou a amizade de Chico Maia com os empresários, não sei, nem me preocupei em saber. O primo e a esposa pouco duraram na administração de Maroca, que terminou com baixíssima popularidade. O processo em questão sequer chegou à fase de denúncia, porque não havia indício de crime algum.

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O jornalista desembarca na Antártida para uma reportagem
sobre cientistas e militares brasileiros no continente
A realização de sonhos
Não por causa da reação da dupla de empresários, minha participação neste jornal se tornou cada vez mais rara, assim como minhas idas à Sete Lagoas, apesar de ter os meus pais, irmãos, sobrinhos e outros parentes na cidade. 

O meu distanciamento da terra natal se deu em um processo natural, iniciado há 28 anos, quando ingressei na PUC-MG, e foi intensificado com a mudança para Brasília, 23 anos atrás. Mas Sete Lagoas sempre se fez presente.

Graças a um encontro casual com a setelagoana Márcia Raposo em um semáforo - ela no carro e eu na calçada - soube que o Correio estava contratando jovens jornalistas para uma ampla reforma gráfica e editorial. 

Após insistentes telefonemas para o editor do caderno Cidades de um dos maiores jornais do país, consegui uma oportunidade. Imediatamente troquei o cargo de assessor no Governo do Distrito Federal pela vaga de freelancer no Correio. Troquei o que não queria ser pela busca do sonho que buscava desde que deixei Sete Lagoas, minha família, meus amigos, minha namorada.

De repórter temporário me tornei repórter júnior, pleno, sênior, especial, coordenador, subeditor, editor. Publiquei matérias em todas as editorias do Correio. Participei de algumas das principais coberturas jornalísticas deste século. Conheci alguns dos piores e melhores lugares do planeta. Tive as piores e melhores experiências pessoais e profissionais. Ganhei prêmios.

Do Correio fui para a Crusoé. Decidi me dar uma espécie de período sabático no começo da pandemia, o que me permitiu ficar mais tempo com a família e a fazer trabalhos muito prazerosos, que renderam reportagens nas revistas Piauí e National Geographic, um desejo desde o início da carreira que nunca imaginei realizar. Hoje estou na redação do mineiro O Tempo em Brasília.

Na capital construí não só a minha carreira profissional. Casei com a antiga namorada de Sete Lagoas, hoje uma servidora do Superior Tribunal de Justiça (STJ). Tivemos uma filha brasiliense, que adora brincar com as primas nos quintais dos avós, na Praça Tiradentes e na rua José Gonçalves de Oliveira. 

O olhar sobre a cidade
Além dos familiares, o que ainda me vincula a Sete Lagoas são os amigos, como os que fiz no Regina Pacis e no Sete Dias, como Celso Martinelli, Renato Alexandre e os já citados. Das recentes boas lembranças da cidade tenho a participação em sua primeira feira literária, em que lancei meu terceiro e mais recente livro-reportagem.

Mas não posso deixar de registrar a minha realista impressão sobre Sete Lagoas. Se por um lado hoje é mais democrática, dando voz à periferia, em grande parte ao fenômeno das redes sociais, apresenta cenário cada vez mais decadente, de desigualdade enorme, sem os elementos que orgulhavam seus habitantes.  

Enquanto invasões surgem descontroladamente, fruto de questões econômicas e sociais e da histórica falta de preocupação com o ordenamento urbanístico, seu centro sofre com deterioração dos imóveis, seus bairros habitacionais veem casas darem lugares a prediozinhos cafonas e superpovoados, suas praças foram abandonadas, suas lagoas estão desaparecendo ou condenadas à extinção, a sua serra foi tomada por crateras, suas ruas perderam suas árvores, suas calçadas são mal cuidadas, sua sinalização é escassa, seu trânsito é caótico. Já seus novos e nobres condomínios com casas de arquitetura de gosto duvidoso em seu entorno só escancaram o fosso da desigualdade, em nada contribuindo para de fato combater a epidemia da violência urbana.

É como se Sete Lagoas tivesse decidido seguir o pior dos caminhos entre aqueles apresentados no histórico caderno especial que fiz com a equipe do Sete Dias há mais de 20 anos e que discutia o impacto da instalação da Iveco na cidade.

Renato Alves, 47 anos, setelagoano, é jornalista, editor do O Tempo em Brasília. Começou a carreira no Sete Dias, trabalhou no Correio Braziliense, na Crusoé e no The Brazilian Report. Cobriu alguns dos principais eventos do século XXI, como o terremoto que devastou o Haiti e a Copa do Mundo na África do Sul, ambos em 2010. Em 2017 esteve na Coreia do Norte, sendo o único jornalista ocidental no país durante o seu bem sucedido teste da bomba-H. A viagem resultou em seu terceiro livro reportagem: O Reino Eremita (Quixote-Do, 2018). Ele ainda é autor de O Caso Pedrinho (Geração, 2014) e O Povo da Lua (Outubro, 2016).

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Renato Alves e uma capitã do Exército Popula da Coreia, em Pyongyang:
visita ao país rendeu seu terceiro livrorreportagem, O Reino Eremita

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